Bonaire, outubro de 2011
Fim de tarde de um dia lindo, Brava amarrado a uma poita, flutuando calmamente em uma água de um azul inexplicável, de transparência poucas vezes igualada.
Estávamos em Bonaire, ilha que faz parte das ABC... Aruba, Curaçao e Bonaire.
Chegamos um ou dois dias antes, com um casal de amigos a bordo. O primeiro casal de amigos que recebíamos em nossa casa flutuante.
Apenas estar ali, flutuando, vendo os peixes nadando por baixo da quilha do Brava já era a realização do sonho.
Havíamos conseguido... Chegamos em uma área fora da região de ocorrência de Furacões.
Tínhamos velejado uma grande parte do Caribe no meio de uma ativa temporada de Furacões, passado por 4 Tropical Storms, uma no meio do caminho que passou com seu centro caprichosamente a 14 milhas de onde estávamos ancorados em uma baía relativamente exposta.
Havíamos velejado mais de mil milhas em nossa nave dos sonhos, as primeiras mil de milhares que ainda viriam e virão.
Estávamos maravilhados. Felizes, realizados.
A presença dos amigos a bordo nos provava que seria possível viver o Sonho, viver DO Sonho...
Rádio VHF ligado, canal 68, canal de chamada dos cruzeiristas em Bonaire... de repente escuto um veleiro pedindo instruções sobre como e aonde ancorar.
Me comunico com ele, explico que devido a proteção dos Corais, em Bonaire não se ancora, amarra-se a uma das poitas disponibilizadas e mantidas pelo governo local, que cobra uma taxa de 10 dólares por dia.
Eles agradecem, conseguem visualizar as bóias brancas, iniciam a aproximação.
Resolvo ir com o Dingy até eles e dar uma olhada nos cabos de amarração para garantir que teriam uma poita em boas condições. Para ter certeza dou um mergulho naquela água de sonho em que não precisa usar uma mascara de mergulho para ver os pequenos detalhes...
Separo os cabos, volto ao dingy, espero eles chegarem com calma e técnica, na velocidade certa, sem gritos, sem afobação, classe em todos os movimentos.
Ele no leme, ela na proa.
O veleiro, um Double Ender (double proa ai no Brasil), 38 pés, um Vagabond 38, imaculadamente mantido, lindo de se ver.
Com um ar clássico, dava para ver que por baixo da tinta nova que refletia o por do sol que só estas ilhas dos sonhos conseguem oferecer, tinha muita história guardada.
Ela recebe os cabos de amarração, prende nos cunhos, eu vou deslizando pela lateral, olhando os detalhes do barco, lendo as entrelinhas, tentando aprender o que podia, fascinado com adaptações inteligentes, verniz fresco, cabos simetricamente alinhados...
Chego na popa, faço o primeiro contato com ele.
Ela chega logo após terminar de organizar os cabos de amarração na proa.
Ambos me convidam para entrar.
Entrar em um veleiro de outra pessoa é muito mais que entrar em uma casa de alguém, é penetrar em seu Universo.
Mais uma vez, tudo surpreendente... Desde os acabamentos bordados nas almofadas do cockpit, mais verniz fresquinho nas escadas, eletrônicos simples, funcionais e confiáveis, casa limpa, organizada, até o inacreditavelmente grande, gordo e peludo gato cinza que parece ter sentido uma atração fatal pelas pernas salgadas deste que te escreve... para desanimo dela, que explicou que tinha acabado de dar banho no terceiro elemento da tripulação.
Don e Nancy... Nancy e Don.
Ele estiloso, barba meio branca, meio loira, cabelos ainda presentes, com aquela cor de pele que só quem vive no mar acaba tendo. Seguro nas palavras, educado e comedido nos comentários, agradável de estar perto. Ela frágil, pequena, magrinha, mas que transparecia uma fortaleza enorme em seus atos. Parecia que ia quebrar ao meio só em tirar o gato já meio salgado do meio de minhas pernas.
Casal que se conheceu nos tempos áureos da contra cultura americana, que entre uma sessão lisérgica e outra resolveu abandonar o sistema, fugir para outra realidade e criar seus filhos pelo mundo, expondo eles a um universo mais colorido que os tons de cinza da cidade californiana em que viviam.
Me falaram que estavam no mar a 25 anos.
25 anos em busca da realização de sua meta, de seu sonho. Velejar ao redor do mundo.
Compraram o Veleiro por quase nada, sem quase nada dentro além de uma enorme lista de coisas a fazer. Resolveram o que podiam, equiparam como sabiam, tiraram o casal de filhos da escola e partiram... 25 anos atrás.
Naturalmente me senti fascinado pela história deles.
Fiquei uma meia hora em contato, a bordo, em uma agradável conversa em que os minutos voam e os assuntos se conectam com facilidade. Pude sentir que eles também se sentiam confortáveis comigo.
Terminei a xícara de chá, dei mais uma afanada na cabeça da bola de pelos, um beijo na Nancy, um aperto de mãos firme ao Don, convidei-os a visitar o Brava e voltei para minha casa.
No outro dia organizamos um PotLuck a bordo do Brava.
Para quem não sabe, nada mais é que um junta tribo em que cada um leva alguma coisa e no fim todos se deliciam com um variado banquete, sem onerar financeiramente ninguém. O status esta em compartir, não em se exibir por estar pagando a conta.
Embalados pela cerveja, de estomago cheio, vendo mais um fim de tarde idílico, não tinha como o bom papo não correr solto.
As mulheres se juntaram, a Nancy foi dar umas dicas para a Rafa, passear por dentro do Brava, eu fiquei no cockpit e dei uma volta no convés do Brava com o Don com o sorriso de orelha em orelha em ouvir uma pessoa com tamanha experiencia me falar das qualidades do Brava, perguntar detalhes que só quem sabe o que é importante em um veleiro consegue perceber...
Mais uma vez tive a certeza que o barco que me escolheu realmente pode ir muito mais longe do que sempre sonhei.
Noite começando a cair, eles se despedem... eu não queria que o tempo passasse tão rápido, queria conviver mais, aprender mais. Em um impulso instintivo, provavelmente guiado pelo medo de não mais os encontrar, falo para o Don...
- Sei que conselho não se pede e não se dá, mas você teria alguma dica para me dar?
Na minha cabeça, pensava em alguma ancoragem inacreditável em alguma esquina perdida de algum Oceano, em alguma forma milagrosa de ver o vento fazer a curva, ou de algum segredo que certamente ainda levarei anos para aprender.
A resposta dele foi simples, direta, sincera e verdadeira.
- Just DO what YOU want!!! Apenas faça o que você quer fazer!!!
Não no sentido de buscar realizar o sonho, ou de querer velejar por aí atras de ondas, ancoragens, experiencias, culturas, mas no sentido mais profundo do seu desejo pessoal.
Se você quer velejar pelo Caribe no meio da temporada de furacões, vai e faz da forma que você acha que vai ser a mais correta, mesmo que existam milhares de pessoas que irão te dizer que não existe forma correta de fazer algo que é errado. Velejar pelo Caribe no meio da Temporada de Furacões não é certo, nem seguro.
E nós tínhamos acabado de fazer de forma correta o que é considerado errado, mesmo que para isto tivemos que contar com a sorte, provavelmente fornecida por um Universo conspirando a favor daquele que se dispõe a seguir seus sonhos de corpo e alma. Ou como diz o ditado... Deus protege os Abobados.
Quando cheguei no Panamá, ainda reencontrei o Don e a Nancy, em outra ancoragem idílica, em outro fim de tarde surreal.
Era novembro de 2011. Estávamos em San Blas Islands, Cayo de Coco Bandero. Certamente uma das ancoragens mais lindas de uma das regiões mais lindas do Caribe.
Eles se preparavam para cruzar o Canal do Panamá, subir a costa do Pacífico e finalmente retornar para aquela cidade cinza que abandonaram a 25 anos, finalmente terminando sua Volta ao Mundo em um veleiro. Não tinham pressa, provavelmente hoje, 2 anos e meio depois, devem estar flutuando em algum canto do México banhado pelo Pacífico.
Eu tinha a cabeça atormentada por um problema na caixa de cambio do Brava, mas imaginava em chegar a Bocas del Toro, passar a temporada de ondas, em março atravessar o Canal do Panamá e em abril seguir rumo a Galápagos e a Polinésia Francesa ainda em abril de 2012.
Vida segue, mundo dá voltas, pessoas importantes se vão, outras ainda mais importantes ainda nem nasceram e hoje me peguei relembrando aquele agradável fim de tarde, naquela ancoragem idílica, com peixes nadando em uma água tão transparente que seria mais simples pensar que eles estavam voando.
- Just DO what YOU want!!!
Lembro da felicidade estampada na cara dele ao me falar aquilo. Impossível não acreditar na sinceridade daquele Velho Lobo do Mar...
Ainda no começo deste ano, 2014, senti que chegou a hora de ir ao Pacífico. A MINHA hora... Finalmente!!!
Organizei a lista de projetos no Brava para poder ir em segurança, uma lista de amigos que poderiam fazer tamanha travessia comigo, afinal serão mais de 3 semanas inteiras e mais uns quebrados sem ver terra, só cercado por água, pelo azul... e me programei para em abril cruzar o Canal do Panamá, passar um tempo na Cidade do Panamá organizando os últimos detalhes e fim de maio iniciar a Travessia do maior Oceano do Mundo. Dentro do padrão dos Velejadores. Dentro do senso comum, do que é considerado correto.
Massss....... Just DO what YOU want!!!
Neste exato momento, o calendário derreteu-se. Provavelmente devido a meta de SER FELIZ HOJE, AQUI e AGORA!!! que venho vivendo ultimamente, mas também pelas sábias palavras do Don.
Não tenho que sair na época que todos acham certa. Não vou estar velejando em área de ocorrência de furacões, então porque acelerar as coisas???!!!
Todos saem do Panamá ate junho, para terem tempo de chegar na Nova Zelândia ou Austrália antes do início da temporada de Furacões no Pacífico Sul... fim de novembro.
Bom para eles!!!
Mas, eu nunca pensei em atravessar o maior oceano do mundo, com suas incontáveis ilhas, ondas, culturas, pessoas e ancoragens idílicas em que a água é tão transparente que parece que os peixes voam percorrendo mais de 20 mil kilometros em menos de um ano.
Simplesmente não consigo pensar nesta hipótese. Não entra na minha cabeça dura.
O que EU QUERO, agora naturalmente, é surfar em Bocas del Toro até a temporada de ondas acabar. Velejar para San Blas e sentir toda aquela beleza e paz mais uma vez e sair de lá no início da temporada de chuvas, aí por junho.
Depois cruzar o Canal, depois passar mais um tempo na Cidade do Panamá acertando os últimos detalhes e aí então começar a cruzar o Pacífico em direção a Galápagos, provavelmente no fim de julho. Casualmente mais ou menos no mesmo período em que fizemos a nossa primeira Travessia do Pacífico em 2008, na qual saímos do Panamá na metade de julho.
Isto vai me dar mais Surf, mais velejadas lindas, mais ancoragens idílicas, mais possibilidades de receber pessoas, mais possibilidade de fazer caixa para vagabundear mais no Pacífico, e, a possibilidade de usar o visto da Polinésia Francesa até o limite de chegada do tempo ruim, e depois subir rumo norte e passar o natal em uma área sem Furacões, aeroportos, congestionamentos...
Apenas altas ondas, pessoas sinceras por perto, ilhas paradisíacas, fins de tarde surreais em ancoragens idílicas com a água tão clara que será mais fácil pensar que os peixes voam.
Obrigado Meu Deus por colocar pessoas tão especiais em meu caminho!!!
Obrigado Meu Deus por sempre guiar meus passos!!!
Te prepara Pacífico, que o Brava está a caminho!!!
O Brava flutuando em Bonaire
Fim de tarde em Bonaire
Dobrando as velas após a travessia Curaçao - Bonaire