sábado, 9 de maio de 2009

Puerto Escondido


Após a saída do Casal Rhyse e Denise, ficamos apenas a Rafinha, o Cameron e eu para darmos a continuidade na missão de levar este belo veleiro até o Panamá.
Nos demos conta do tamanho do trabalho que teremos pela frente em um dia de ressaca, em que todos acordamos com bastante sede e vontade de permanecer na cama, mas sabíamos que tínhamos que seguir viagem. Lentamente organizamos tudo a bordo, fomos a terra mais uma vez, desta vez para fazer mais compras, reforçar nossas provisões já que Acapulco era a última cidade grande que passaríamos no México, também aproveitamos para trocar algum dinheiro.
Daqui para frente a tendência é ficarmos mais a bordo, menos em terra, o que provavelmente ajudará a mantermos nossas economias, pois evitaremos restaurantes, passeios e outros pequenos luxos que até agora estávamos nos permitindo viver. Aproveitamos o período de Lua de Mel do casal da Nova Zelândia para fazermos uma segunda Lua de Mel eu e a Rafinha, já que a primeira tinha sido mais humilde, porém não menos especial, em que curtimos uma semana em Garopaba.
Mesmo assim não estávamos muito fora de nossas previsões, mas como pretendemos ficar muito tempo ainda na estrada (ou no mar), precisamos controlar nossos gastos. O ideal é apenas ter bom senso nos gastos, e manter o que estamos fazendo, gastando aonde precisa e merece.
Fizemos um bom rancho, de quase 300 dólares, que deverá durar quase até o Panamá, ou seja, quase 2 meses para nós 3 comermos e bebermos com alguns toques de requinte, com grande variedade, com alimentos específicos e de preparo rápido para os dias em que estaremos fazendo as travessias mais longas, bastante suco para aguentar o inclemente calor, algumas garrafas de vinho e alguns produtos de gosto pessoal, como um pote gigante de Nutela para a Rafinha, Salsa picante e Nachos para o Cameron e queijo e Coca Cola para mim. Cada um terá seu seu vício saciado.
Levamos algum tempo para organizar toda a comida a bordo, tentando manter alguma lógica na sua distribuição, e no meio da tarde levantamos âncora em meio a uma baía agitada por uma forte ondulação que havia chegado na costa mexicana no meio da noite.
Nossa próxima etapa seria de aproximadamente 180 milhas náuticas, seguindo rumo 110*, sempre próximo a costa , com destino a uma das praias mais conhecidas pelos surfistas de todo o mundo, Puerto Escondido, uma praia de fundo de areia perfeito que produz ondas maravilhosamente tubulares, muitas vezes comparadas com Pipeline no Havaí, e que sempre foi meu sonho poder conhecer e surfar.
O Cameron já havia estado lá a quase 15 anos atrás, por cerca de um mês, quando desceu desde a Califórnia até a Costa Rica com uma caminhonete atrás de boas ondas, então já conhecia bem a onda.
Logo na saída, tive a sensação de que o mar estava para peixe, saio da cabine e vejo um belo exemplar saltando do lado do barco, sem mais demora coloco a linha na água e em menos de 5 minutos fisgo um belo peixe, chamado por aqui de Skipjack, muito parecido com um Pampo bombado, de quase 5 quilos, que deu um belo espetáculo saltando após ser fisgado e brigou bastante antes de ser colocado a bordo, com o anzol bem no meio do céu da boca. Com um anzol daquele no céu da minha boca eu também dar pulos de dor. Este peixe é bastante comum pelo Pacífico, um dos mais desejado na Polinésia Francesa, com carne bastante branca, mas por aqui, inexplicavelmente, possui uma carne avermelhada como carne de boi, e quando estava filetando ele soltou bastante sangue, fazendo uma sujeira considerável a bordo, mesmo com o Cameron se esforçando para jogar bastante água com o balde. Filés prontos e embalados, janta garantida, rumo acertado, pouco vento, seguíamos com a genoa aberta e o motor em baixa rotação para ajudar a seguirmos e íamos fazendo 5 a 6 nós, pouco para este lindo barco, mas o suficiente para chegarmos em Puerto Escondido no fim de tarde do outro dia, ainda com luz, para podermos ancorar em segurança.
Vez ou outra os golfinhos apareciam para mais um espetáculo, uma ou outra raia saltava dando cambalhotas mais afastada, e muitos pássaros nos acompanhavam, ajudando a passar o tempo e diminuir a angústia de estar velejando com rumo a Puerto Escondido em meio a algumas verdadeiras montanhas de água que passavam pelo nosso través, nos dando a sensação de quase sermos engolidos pelo mar quando estávamos na cava entre duas ondas maiores.
Mais um fim de tarde lindo, mais uma noite tranquila, com poucos barcos passando ao longe, com os turnos divididos coma a Rafinha no primeiro horário, eu no segundo e o Cameron no terceiro.Cada turno com 3 horas de duração em que cada um ficará sozinho, atento a navios ou barcos de pesca em possível rota de colisão, redes de pesca, correntes que possam estar nos tirando do rumo, mudanças na direção e intensidade do vento, na pressão do óleo, na temperatura do motor, na regulagem das velas, mas sempre sobra tempo para observar as estrelas, a lua, procurar estrelas cadentes e satélites, curtir a bilouminescência que pinta as ondas de verde fosforecente, e mesmo com tudo isto para fazer sempre sobra tempo para pensar na vida, na família, nos amigos e, naturalmente, coisas menos interessantes como extraterrestres e monstros marinhos, que pelo menos na minha mente ainda existem.
A únicas coisas que não se pode fazer no seu período de vigia é dormir pois colocaria a vida de todos os demais em risco, fazer xixi na borda do barco, que colocaria a sua vida em risco, nem assaltar a despensa, mas sempre existe a bordo alguns ratinhos que não respeitam esta proibição.
A manhã chegou e notamos que a ondulação havia diminuído um pouco, mas ainda estava muito bem servida e lentamente fomos nos aproximando de Puerto Escondido, aonde chegamos no fim de tarde. Escoltados por um animado grupo de golfinhos, que nos mostravam o caminho a seguir, fomos nos aproximando do vilarejo mundialmente conhecido, vendo enormes ondas quebrarem a menos de 1 km de onde iríamos ancorar, nos mostravam que a coisa não estava para brincadeira, e eu podia ver nos olhos do Cemeron, havaiano, com 11 temporadas em Teahupo no Tahiti (uma das ondas mais perigosas do mundo), um certo ar de dúvida, não sei o que ele via nos meus, mas sabia que estava realmente no limite da sobrevivência surfar um mar como aquele.
Com certa dificuldade conseguimos encontrar um local seguro para ancorar, tendo como maior dificuldade a profundidade da “baía” da Playa Principal, em média 30 metros. Ancoramos com 25 metros, e usamos quase toda a corrente que o Veleiro possui, para tentar manter uma relação mínima de 4:1, sendo que o ideal numa condição como aquela seria 5:1, mas não teríamos espaço para tanto, mesmo assim sabíamos que seria o suficiente, pois não enfrentaríamos ventos fortes nem as ondas eram um problema devido a grande profundidade. Acabamos o processo de ancoragem quase sem luz natural, mas ainda conseguimos ficar uns 15 minutos observando aquelas verdadeiras montanhas de água se dobrando em enormes tubos em que cabiam um ônibus dentro. Ninguém surfando, realmente estava bem grande, imaginamos como não deveria estar no dia anterior em que estava ainda maior.
Jantamos felizes por ter a certeza que o próximo dia seria realmente especial, eu tentando nem pensar no tamanho daquelas ondas, tentando não lembrar das histórias do Alemão que esteve lá e surfou umas bem grandes e me falou dos surfistas que eram arrastados em baixo da água pelas suas pranchas presas no espumeiro das ondas, dos casos de afogamento, das sinistras descrições que lia nas revistas, e, principalmente tentando esquecer a imagem do Rhyse me falando sobre o instinto suicida do Cameron em ondas grandes, fortes e tubulares…. - Ele (Cameron) não mostra nada de especial em ondas pequenas, mas quando o mar cresce, é até mesmo uma pessoa perigosa para estar perto… Se joga nas maiores, ama tubos insanos, nunca puxa o bico.
Inexplicavelmente consegui dormir bem, sem borboletas no estômago, e acordei amarradão para surfar, como o Cameron batendo na minha porta ainda antes das 7 da manhã. Ainda antes do sol nascer arrumamos o dingue e com o sol nascendo o colocamos na água. Vento terral levantando belas cortinas de água para trás das ondas, cena de filme, podia ver que havia diminuído mas ainda estava bem grande, e também pudemos ver que já haviam alguns destemidos caminhando em direção ao pico.
Rapidamente coloquei as quilhas na minha 6´8”, minha maior prancha, torcendo para ser suficiente, mas sabendo que a maioria ali surfava com pranchas bem maiores, normalmente próximo a 8 pés, para ter bastante remada e conseguir fazer a parte mais complicada da onda que é o Drop vertical, no vazio. Teria que ser suficiente, era a maior que eu tinha, a Rafinha se arrumou e veio junto, e fomos nós 3 a caminho das ondas.
A cada minuto estávamos mais próximos, o sol mais alto iluminando a cena toda, o vento terral penteando as ondas e elas cada vez mais próximas, cada vez maiores. Passamos por um seriado que mesmo tendo a certeza que não quebraria em cima de nós já deu aquele frio na barriga nos 3, e deu para dar a real do que iríamos enfrentar, nesta hora o Cameron olha para mim e fala… - Hoje você vai surfar Pipeline! A textura do mar estava perfeita, a luz mais ainda e seguíamos procurando o melhor lugar para surfar, apenas vendo as ondas por trás, eu sem referência alguma, pois nunca tinha estado ali, o Cameron ia dizendo… -Ali tem o Hotel, ali tem a surfshop…. E eu de olho nas ondas, lindas, gigantes.
A Rafinha estava num misto de fascínio pela beleza da cena e medo pelas ondas. Eu maravilhado com aquilo tudo vendo a perfeição das ondas por trás, querendo entrar, mas com medo do que iria ver de frente, o Cameron na dúvida se sua prancha 6´6” daria conta. Chegamos ao local em que normalmente a rapaziada surfa, ele me falou… - Vai tu antes que eu fico com a Rafinha no dingue, depois trocamos. Eu respondi… - Nem fodendo… vai tu antes que eu tenho que entender melhor este mar…
Ele deu uma pensada, mais uma analisada e se jogou… Fiquei com a Rafinha no dingue vendo a coisa toda, depois de uns 20 minutos ele volta dizendo que havia conseguido pegar uma no rabo, sem tubo e sem dúvida alguma precisava de uma prancha maior. Minha vez… sem pensar muito fiz minha oração. Desta vez sem agradecer tanto quanto tenho o costume e pedindo mais proteção que o padrão. O Cameron me falou que tinha uma certa correnteza e me levou para aonde as maiores estavam quebrando e supostamente a corrente me levaria para o lugar certo.
Pulei no mar e saí remando sem olhar para trás, talvez se tivesse olhado para a segurança do dingue teria voltado, mesmo assim segui em frente chegando perto dos outros surfistas, todos sérios, cada um na sua, silêncio geral, dava para sentir o clima especial no ar, dava para ver que todos sabiam que aquele mar era o limite de Puerto, e o limite da maioria dos presentes, inclusive o meu.
Resolvi não ficar pensando muito, entrou uma entre-série, remei em uma direita, estava quase entrando e vejo um doido despencando, acertando o drop, a onda era dele, não entrei, dei a volta e notei que tinha ficado mais embaixo. Coloquei os braços a remar o mais rápido que pude e vi o dingue passando por uma pirambeira que estava vindo em nossa direção…era a série entrando…Consegui passar pela primeira, na segunda vi que a coisa ia ser complicada, que não conseguiria passar o seriado todo, meio por instinto virei e remei no rabo dela, entrei, acertei o drop, virei na metade da onda, ela armou, jogou o tubo, nada tão grande como as outras que tinha visto no dia anterior, rodou lá na frente, foi ficando escuro e ela fechou na minha cabeça. Fui para o fundo tentando relaxar e a vaca foi mais tranquila do que imaginava… quando saí vi a prancha em dois pedaços, olhei para o fundo e a outra onda vinha rodando por cima de mim, mergulhei não muito fundo tentando ser acertado só pela espuma e não pela coluna de água que ela certamente tinha mandado para as profundezas, deu certo, ela me acertou e me levou mais perto da praia, os dois pedaços da prancha se separaram de vez, peguei a metade presa na cordinha, virei as quilhas para frente e esperei o próximo espumeirão que não demorou a chegar e me levou mais para a praia, depois fui remando até a areia aonde cheguei adrenalizado mas feliz, triste pela prancha que era muito boa, e sabia que ia precisar dela num futuro próximo, mas realmente feliz…. Tinha entrado num dos maiores mares da minha vida, no mais quadrado certamente, surfado meia onda, sentido toda a sua perfeição, todo seu peso, toda sua qualidade, toda sua beleza, e foi uma experiência proveitosa, não traumatizante.
Catei a outra metade na areia, levantei as duas para mostrar ao Cameron e a Rafinha que tinham ficado no dingue que eu estava na areia, que tinha quebrado a prancha e finalmente pude ver de frente aonde eu tinha me metido… Provavelmente se eu tivesse visto de frente antes de entrar não teria entrado… a coisa estava bem maior do que eu imaginava, mas ainda assim no limite da perfeição.
Foi a sessão de Surf mais rápida e mais intensa da minha vida, de mais de 20 anos surfando pelo mundo, e foi o suficiente para saber que um dia vou voltar com mais tempo para aprender a surfar estas maravilhas.
Caminehi até a Playa Principal e encontrei a dupla que havia colocado o dingue em um local seguro, doei as duas metades da minha prancha para um Salva Vidas local e fomos atrás de uma sushop entar alugar alguma prancha maior para podermos voltar a surfar.
Só encontramos uma 7´6”, bem fina e estreita, já quebrada e remendada duas vezes e o Cameron voltou a surfar. O mar vinha baixando rapidamente, ele entrou, pegou duas, saiu, botou uma pilha paa mim voltar, não voltei, ele entrou mais uma vez, pegou mais uma, levou um seriado na cabeça e também quebrou a 7´6” alugada. Prejuízo de 60 dólares na alugada, mais a minha. Mas mais uma vez valeu cada centavo pago. O mar baixou mais ainda, o vento terminou o espetáculo de vez, voltamos a Playa Principal, tomamos uma limonada e uma cerveja, demos uma volta pelo pueblo e voltamos para o veleiro.
Às 2 da tarde já tínhamos levantado âncora com destino às Baías de Huatulco, felizes com a mágica manhã que havíamos vivido.
Para mim, uma manhã muito especial, aonde tive uma das maiores lições de humildade de toda a minha vida.

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