O dia amanheceu quente, mesmo querendo dormir um pouco mais para aliviar o cansaço acumulado pelo longo trabalho realizado a bordo nas duas últimas semanas, não conseguíamos mais dormir. Na verdade sofríamos um misto de calor e ansiedade. Finalmente estávamos no dia da largada da XXI Regata Internacional Recife-Noronha, e ainda havia alguns detalhes a serem resolvidos. Tomamos um café da manhã sem pressa, a Rafinha deu uma organizada no interior do VelaMore (um Veleiro Multichine 34 em aço que foi nossa casa por mais de 15 dias até então) e eu e o Durval e fomos à terra com o cabo da âncora para fazer a marcação de seu comprimento.
Algum tempo depois chegaram a Rose e o Jaime, o casal proprietário do VelaMore e nossos maravilhosos anfitriões em Recife, junto com a Gaby. Traziam suas bagagens, e muito gelo que seria necessário para manter nossas bebidas geladas por mais de 300 milhas náuticas do caminho entre o Cabanga Iate Clube e Fernando de Noronha.
Algum tempo depois chegou a Bárbara com mais gelo ainda, finalizando o que seria embarcado e completando nossa tripulação.
Ao meio dia e meio já estávamos nos últimos detalhes, acompanhando um movimento frenético de mais de 60 veleiros saindo pelo estreito canal de meia maré com destino à linha de largada da Regata.
Constantemente nosso trabalho era interrompido por alguma brincadeira, por alguma piada, por algum desejo de boa travessia de algum tripulante de outro veleiro participante, que já eram bem mais que isto, eram amigos, vizinhos, cúmplices de um desejo comum a todos, realizar em segurança a travessia e chegar a um dos locais mais lindos do litoral brasileiro, o Paradisíaco Arquipélago de Fernando de Noronha.
Ume e meia da tarde, já não havia mais o que esperar, a maré continuava subindo, o Velamore já flutuava orgulhoso, soltamos as amarras e iniciamos a nossa jornada.
O Cap. Jaime me passou a responsabilidade de levar o veleiro até a largada, e feliz da vida, fui manobrando o Vela pelo canal, sendo seguido de perto por um Jeanneau 54 do nosso divertido amigo e Skipper José (Zé Caretta), com ambas tripulações descontraindo e pegando no pé uma da outra.
Duas e vinte chegamos ao Pernanbuco Iate Clube, local de espera para a chamada dos grupos de largada. Nosso grupo era o Vermelho, o primeiro e maior grupo a zarpar, então nossa espera seria bastante curta.
Três e quinze, soltamos as amarras da trainerinha que nos mantinha parados em meio à corrente que entrava forte pelo canal, e lentamente fomos seguindo para as bóias de checagem de tripulação pela Comissão de Regata, todos a bordo uniformizados com a camisa dos patrocinadores, dando tchau para a multidão na margem, felizes e ansiosos.
Eu timoneando com atenção para não fazer nenhuma besteira, o Cap. Jaime confirmou nossa tripulação, foi dado o sinal de 4 minutos, estava chegando a hora.
Três minutos, dois, um... tentei nos colocar em uma boa posição para a largada mas a raia já estava cheia, com o comando de voz dei o bordo por trás de um veleiro em Aço gigante,argentino, o Viejo Lobo, a turma toda trabalhou em conjunto, o Durval e o Jaime na Genoa, as meninas na escota da Mestra, acertamos o rumo e lentamente largamos.
Ficamos muito por dentro do canal, na sua parte mais funda e consequentemente com mais corrente contrária, e vimos a turma nos ultrapassando, mas o clima era de confraternização, não de competição. Quando conseguimos espaço orçamos e saímos do canal, ganhando mais velocidade e começando a tirar a diferença entre nossos amigos.
Nos posicionamos na frente dos concorrentes da nossa classe na largada, mas a corrente contrária nos colocou em último, tínhamos que trabalhar sério agora.
Todos a bordo na espectativa, o Cap Jaime,o Durval e eu discutindo alguma estratégia, todos tentando trimar o melhor possível as velas, e fomos tirando a distância.
Eu tentava fazer o melhor possível na Roda de Leme, assim como cada um a bordo em sua função, e estava dando resultado. Saímos do canal do Porto de Recife já bem próximos do Mahi Mahi e tirando a distância que o Minerin tinha aberto na largada.
Finalmente mar aberto, finalmente estávamos velejando no Atântico, e, o mais importante, agora tínhamos mais liberdade para escolher nosso rumo.
Tínhamos que montar uma bóia antes de podermos fazer rumo direto ao arquipélago, e vimos os veleiros maiores dando o bordo com rumo à ela, o que nos pareceu ser um pouco cedo. Decidimos por uma estratégia diferente, iríamos ganhar bastante altura para não fazer uma orça tão fechada rumo à bóia, e fomos o veleiro que mais subiu antes de rumar à bóia.
Vimos o Minerin dar o bordo bem antes, o Mahi Mahi ainda nos acompanhou por mais tempo, mas bordejou também, e nós seguimos por mais quase meia milha antes de cambarmos.
Quando finalmente o fizemos, tínhamos vento de través-alheta, a condição em que nosso veleiro mais anda, e saltamos de 3 para 6 - 6,5 nós, seguindo como um foguete azul para a bóia. Chegamos nela rapidinho, montamos com classe, mais uma vez com todos trabalhando juntos mas sem atropelos e mais uma vez nos juntamos com o pelotão.
Nossa estratégia tinha sido tão bem sucedida que perdemos de vista o Mahi Mahi e o Surazo, o veleiro chileno (segundo deste país a dar uma volta ao mundo) do Luís (primeiro chileno a dobrar o Cabo da Boa Esperança) e seus filhos Nicolas e Sebastián, trio gente finíssima que tinham se tornado grandes amigos durante nossa estadia no Cabanga, e ainda conseguimos colar bastante no Minerin.
Agora era um rumo direto até Noronha, 70 graus na bússula para ganhar alguma altura, atenção no Leme e paciência para aguentar o cotra-vento, a orça bem fechada que seria nosso destino nos próximos dias.
Seguíamos rumo ao paraíso, mas para chegar lá o caminho não seria fácil. Tínhamos vento entre 12 e 15 nós, na cara, mar picado e algumas ondas atravessadas. Lentamente a noite chegou e começamos o revezamento no leme, com cada um tentando sempre fazer o melhor possível, e estávamos andando bem.
Decidimos por turnos duplos, um no Leme e outro na regulagem das velas, duas horas cada turno, 4 de descanso, quem podia ajudava na comida ou ficava junto batendo papo e ajudando o tempo a passar, ajudando a esquecermos do extremo desconforto que é velejar em um ângulo fechado com o vento, que cria um balanço errático, chato mesmo.
No meio da primeira noite nos deparamos com a primeira calmaria, no rádio ouvíamos os veleiros mais a fretne comentando da falta de vento, 2 a 4 nós, deslocamento de um, dois nós, nada parecido com o que todos contávamos, ventos de 15 a 18 nós vindo de leste-sudeste que nos faria andar sempre acima de 5 nós, que nos faria vencer a distância entre 40 e 50 horas. Estava ficando claro a todos que a Regata seria mais demorada.
O dia amanheceu cinza, felizmente encontramos uma nuvem que se por um lado nos deixava molhados com sua chuva fina, por outro nos fornecia o vento que precisávamos para seguirmos em frente. Próximos ao meio dia, mais uma calmaria gigante.
O Cap. Jaime chamou todos ao Cockpit e fez uma breve reunião. Com a velocidade que estávamos mantendo, levaríamos 4 e não dois dias para chegar. Não tínhamos alimento suficiente para tanto tempo, tínhamos comida para mais, mas não alimento. Poderíamos seguir apenas na vela e não morreríamos de fome, mas seria um longo período comendo Miojo de copinho ou poderíamos ligar o motor, ser desclassificados da regata e chegar mais cedo. Decidimos esperar mais uma hora para ver o que aconteceria com o vento. Ele acabou chegando, mais uma vez com pouca intensidade, mas estávamos seguindo ao nosso destino mais uma vez, e ainda tínhamos boas chances de conseguir um lugar no pódium. No fim da tarde mais outra calmaria, esta ainda maior que as anteriores. Não havia mais o que ser feito, tínhamos que ligar o motor para tentarmos chegar, ou levaríamos 5 dias para fazer o percurso estimado em 2.
Com certa tristeza demos adeus à Regata, mas nosso objetivo principal era chegar em Noronha, e era nisto que estávamos focados.
Cerca de uma hora e meia após começarmos a motorar, ouvimos um barulho estranho vindo do motor, desligamos ele e o Jaime foi conferir.
Voltou da casa de máquinas com uma cara triste, chamou todos ao Cockpit para mais uma reunião... Era a Buxa do eixo do hélice, tinha se quebrado, não pódíamos mais contar com a ajuda do motor, o vento estava próximo do zero, votamos e por unanimidade decidimos pela precaução. Decidimos voltar para Recife.
Em quase 30 horas tínhamos feito menos de 90 milhas náuticas, quando deveríamos ter feito mais de 140. Era isto, é assim que se deve proceder no mar, a precaução tem sempre que ser a prioridade, e nisto o Cap. Jaime foi exemplar.
Demos o bordo, proa para Recife, o vento já não era mais contra, e mesmo fraco, nos empurrava de volta, acabou-se desconforto físico, mas agora tínhamos que lidar com a postergação do sonho de chegar a Noronha velejando.
Fizemos um feijão quentinho para levantar o astral a bordo, ligamos o piloto automático, a noite surgiu estrelada e lentamente voltamos.
Acabamos chegando ao Pernambuco Iate Clube no meio da tarde seguinte.
Fomos vencidos pela falta de vento e por um problema mecânico que ninguém poderia prever anteriormente.
Talvez se tivéssemos largado por fora do canal teríamos largado melhor.
Talvez se não tivéssemos mantido o rumo leste ao montarmos a bóia tivéssemos encontrado mehores ventos mais afastados da terra.
Talvez se tivéssemos carregado mais o barco com alimentos poderíamos ter esperado o vento entrar.
Talvez...talvez....
Mas a vida não é feita de "Talvez" e de "Se", a vida é feita de FATOS.
Os fatos eram de que o vento não apareceu, a comida era suficiente para nossos planos e fizemos o melhor possível na nossa estratégia.
E não podemos reclamar de tudo que aconteceu.
Fomos recebidos de forma maravilhosa por uma família MARAVILHOSA, a Rose e o Jaime, e as meninas Gabriela e Bárbara.
O Fato é que temos um grande amigo que nos conheceu através do nosso Blog e foi incansável na trimagem das velas, e tem se mostrado uma pessoa maravilhosa em todos os sentidos, o Durval.
O Fato é que fizemos vários amigos, conhecemos pessoas que têm o mesmo sonho que nós, que estão vivedo a mesma vida que nós, e, por incrível que possa parecer, não são poucos e são brasileiros, nascidos em uma terra em que decidir viver no mar é como decidir ser astronauta.
O Fato é que tive a oportunidade de ajudar a montar o veleiro e testar tudo o que aprendemos nos últimos anos, graças a uma incondicional confiança em mim depositada pelo Cap Jaime.
O Fato é que a Rafa fez o turno de igual para igual com os demais e teve mais uma constatação da sua qualidade marinheira.
E, principalmente, de que Noronha continuará lá, bem como as amizades que fizemos continuarão vivas, continuaremos nos corações daqueles que cativamos, e levaremos nossos corações ainda mais carregados de pessoas que nos cativaram.
E, continuamos vivos, felizes, apaixonados pela vida, e sedentos por mais aprendizagem e aventura!
É isto que levaremos na lembrança.
Tenho que ir, pois estamos indo a Porto de Galinhas curtir as belezas do nordeste.
Um abraço a todos
Mané e Rafa
8 comentários:
Nossa Mane... Que conclusão linda! É essa visão dos fatos que torna a experiência em algo marcante e especial! Alcançar ou não os objetivos não é o principal e sim a jornada! Emocionante oq escrevesse, e demonstra muita grandeza e maturidade da parte de vcs!!!
E tbm, terminar essa etapa com Porto de Galinha não é nada mal neh? Outro lugar maravilhoso!!!! :D
Muitas saudades!!!
Beijos!
Vai na fé Mané.
Abraço
Binho
É uma pena não terem chegado a Noronha, mas assim é melhor: vocês chegarão pela primeira vez só os dois, com o veleiro de vocês... Como diz um velho amigo meu: "mais além"...
Abraços!
Gustavo
É isso aí Mané e Rafinha!
Noronha continua lá, graciosa e aguardando um "certo" casal (em especial), que num belo dia chegará!
Certamente, aproveitarão o calor do nordeste com a mesma disposição e energia positiva de sempre, para novas descobertas e amizades...
E o blog não pode parar!!!???
Abraços e muita àgua de Côco!!!
Ps: Emocionante ler esse "capítulo" e estão escrevendo muito bem também!!! hihihi
Vâmo lançar um livro? Mané, o escritor viajante... bom de mais... auhauhahuau Chorei... hahuahua
Ei, vcs ainda estão viajando? Já chegaram? Por que não postaram mais nada no blog? Eu estava acompanhando e não sei mais nada de vocês.
Aline
po mané! como voces tao?faz mais de 2 messes que não postam!!!
aonde estao?
abraço e tudo de bom!!!
Dalhe manezeras!!!
é o pi!ond voces tao tche??
tem q volta a posta!
abração
Pietro
ARE YOU GUYS ALIVE???
DAVID
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